por Cassiana Der Haroutiounian (22/04/2020)
(https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2020/04/22/tempo-pausa-silencio-o-ma-%E9%96%93-como-uma-potencia-do-vazio/)
Vivemos uma suspensão de nossas vidas. Em um intervalo de espaço-tempo que jamais a história pode prever para nossa civilização. Estamos no presente. Numa pausa, num silêncio. É nisso que nos apegamos, no hoje, porque o passado está cada vez mais distante… e o futuro? Tá bem longe também… E esse longe é abstrato, podendo ser amanhã ou em meses.
Na semana passada falamos do tempo a partir do Bergson. Nesta semana, entrevistei a pesquisadora Michiko Okano e professora da Universidade Federal de São Paulo para alguns devaneios partindo do “MA” – representado pelo ideograma 間 – um elemento japonês que significa um entre-espaço a partir do qual acontece o processo de comunicação, um quase signo.
Tradicional na cultura japonesa, o “MA” está presente quase que de forma intuitiva nas artes, arquitetura e nas relações interpessoais. Tudo parece fazer sentido dentro dos significados do 間 na dinâmica de suas vidas, como, por exemplo, como se cumprimentam, na distância entre os corpos durante o gesto. A relação estabelecida entre os seres é o que provoca a melhor experiência vivida. E o ser humano se faz dessa relação vivida, como um indivíduo no coletivo.]
Nós, do “Ocidente”, que de alguma forma tentamos sempre apreender algo como coisa para poder se apropriar, buscamos infinitamente uma palavra que resuma o MA em toda sua abrangência. Michiko, de origem japonesa e maior estudiosa do 間 no Brasil, em sua tese, busca propor a espacialidade “MA” como signo e processo de mediação característico da cognição e percepção entre os japoneses, de modo a abrir novas possibilidades de comunicação para aprofundar o diálogo entre o Japão e o Ocidente, fora do âmbito exclusivo das imagens estereotipadas, facilmente aceitas pelos paradigmas de mercado em tempos de mundialização.
O “MA” é uma potência, um devir, uma possibilidade que pode se manifestar de várias maneiras. Não é algo linear e se manifesta de 3 formas distintas: 1) vazio; 2) espaço entre, isto é, uma zona de suspensão, uma coexistência na dualidade; 3) espaço e tempo, como uma preparação para se chegar a um novo lugar, quase espiritual. Se nos apegarmos ao “MA” como um tempo necessário como preparação para o que está por vir, então vivemos o estado “MA” nos dias de hoje, na efemeridade e na impermanência da vida. Na cultura ocidental, o homem é antropoceno, diferente da cultura oriental, panteísta, na qual o homem é parte da natureza e respeita o poder que ela tem. Claro, existe uma rarefação dos pensamentos-base do Japão, mas existem, ainda assim, os vestígios desse respeito e dessa consideração com a natureza, o que talvez seja uma herança do xintoísmo.
Nesses dias habitados do hoje, vivemos processos meditativos, processos de reflexão, de novas formas de conexões e uma possível transformação interna, na produção de um novo signo, vivendo como indivíduo um “MA” potencial, na reminiscência de som que antecede o silêncio.
Existe um vazio disponível que os japoneses permitem com o “MA”, sugerindo os caminhos e não na entrega da fórmula exata. O processo torna-se o mais importante. Vivemos nesse processo, nesse vazio completamente cheio de possibilidades, na extrema potência do vir a ser, deixando nossos poros abertos para a multissensorialidade, em um momento de não ação.
“Quando nada acontece há um grande milagre acontecendo que não estamos vendo.” Guimarães Rosa.
Na arte oriental, ao invés de usar o preto e o branco (não evidenciando a dualidade) preferiam o cinza, para deixar que cada espectador preenchesse a obra com seu repertório. Numa galeria, a parede branca não é um vazio sem potências, é o vazio do que está por vir, na espera do quadro, da escultura, na disponibilidade do vazio, ao culto do imperfeito, que intencionalmente deixa algo inacabado para a imaginação completar. A arte japonesa não quer representar o mundo como a gente vê, mas como ele aparece aos olhos de um artista. “Ao deixar algo não dito, é concedida ao observador a oportunidade de completar a ideia; deste modo, uma grande obra-prima prende sua atenção até você ter a impressão de ser realmente parte da obra. O vácuo está ali para que você possa entrar e preenchê-lo completamente com sua emoção estética.” Kakuzo Okakura
Pensar na coexistência das coisas, dos espaços, dos seres e como o particular afeta o conjunto é bastante pertinente ao que vivemos hoje, estando em casa como indivíduos para fortalecer o mundo como sociedade, num movimento do microcosmos para o macrocosmos, em pequenas ilhas, pequenos universos.
“Aqueles entre nós que não conhecem o segredo de ajustar adequadamente a própria existência neste tumultuado mar de tolos problemas que chamamos de vida estão em constante estado de miséria, enquanto tentam em vão parecer felizes e contentes.” Kakuko Okakura
Escolhi alguns artistas japoneses de diferentes épocas, que tem o vazio como um elemento forte em suas imagens, para ilustrar a matéria (vide aqui)
E se vc quiser saber mais sobre o MA, acesse o podcast da Piti Koshimura que é editora e curadora do blog Peach no Japão.
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